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Textos: Prosa

O Vassoureiro – por Jorge Ventura

 

Ele andava sumido havia anos, mas resolveu aparecer de novo. Taí outro profissional persistente. Nesta última década, o Vassoureiro tem marcado presença, eu diria, em lugares inusitados.  No ponto de ônibus, em frente ao estádio do Maracanã nos dias de jogo e até nas praias, debaixo de um sol escaldante. Agora, não faltam vassouras coloridas, com design arrojado e bonito acabamento. Confesso que não tenho muita certeza quanto à resistência e durabilidade desses produtos, principalmente as feitas de plástico, que são as mais “sedutoras” para as novas donas de casa.
Ah, que saudades! Antigamente, as crianças da minha geração costumavam brincar com as de piaçava e de pelo (feitas com cabo de madeira) como se fossem cavalos-de-pau. Noutras vezes, serviam de balizas de gol nas peladas de campo da gurizada.  Aliás, as vassouras sempre tiveram mil e uma utilidades: suporte de varal de roupas no fundo do quintal, matador de baratas voadoras para mulheres desesperadas e socador de teto para reclamar do vizinho barulhento. 
Mas as vassouras têm também seus simbolismos e são cercadas de lendas, superstições e simpatias. Minha mãe, quando varria a casa, pedia a mim e ao meu irmão que saíssemos da frente dela, para evitar que uma piaçava sequer pudesse roçar os nossos pés. Ela afirmava que, se isto acontecesse, morreríamos solteiros. Outra simpatia era para espantar de casa a visita chata ou invejosa. Bastava colocar a vassoura de cabeça para baixo, atrás da porta. Quem acreditava, jurava que dava certo.  Isto sem falar das estórias de bruxas que as nossas avós contavam. As velhas feiticeiras usavam as vassouras como meio de transporte aéreo e como proteção astral. Há estudiosos no assunto, entretanto, que discordam desta versão.
Verdade ou não, o fato é que, até hoje, este instrumento de limpeza faz valer a importância do nosso querido Vassoureiro. Porém, o que me intriga, como disse antes, são os lugares inusitados de onde ele surge. Assim como o vendedor de cofres (pode reparar, leitor), que expõe seus produtos, na beira de estradas e nas calçadas próximas às praias, o Vassoureiro não escolhe data, hora ou local. “Leve duas e pague uma!” – pregoa a maioria. Só fico imaginando um casal, depois de um banho de mar, carregando um guarda-sol, duas cadeiras e duas vassouras. Vá entender!

Laranjeiras, eu sei – por Jorge Ventura

 

Laranjeiras. Do 8º andar do prédio, na Rua Pinheiro Machado, esfrego bem os olhos e debruço-me à janela para saudar a manhã de domingo. Árvores e crianças brincam alegres. Sob um discreto sol de outono, observo a moça segurando um saco de pães, freiras passeando pelas esquinas vazias e a menina levada pedalando sua bicicleta. Ela ri muito e, por alguns segundos, seu reflexo percorre os vidros dos carros estacionados em local proibido.

Nas paredes do meu apartamento, poucas fotos salvam a lembrança do que aqui deixei. Não ouço Vivaldi, como antes, que vinha do som do vizinho. Uma pena. Tudo é silêncio, exceto o eco das vozes alteradas, vindo dos salões do Fluminense. Para variar, os fantasmas de Nelson Rodrigues e de outros ilustres tricolores, discutindo a escalação do time da tradicional camisa verde, branca e grená.

O quarto cheira a mofo. Após o café, jogo a massa cansada do meu corpo sobre o constante desalinho dos lençóis gelados da cama. Tento entender o porquê da insensatez humana, das guerras e da solidão. Mas antes que eu possa enxugar os olhos, o cansaço me embrulha e me joga na covarde escuridão do sono.

Eu sei. Muita coisa mudou durante os cinco anos em que estive fora. Fui para o exterior fazer um curso de seis meses e acabei ficando mais tempo. Quando retornei, perdi algumas referências. A Dona Ema, do 802, morreu, vítima de infarto fulminante; o Seu Carlos, da rua Alice, se matou por paixão; a Dona Laurinda, que passeava comigo pela praça São Salvador, hoje com Mal de Alzheimer, não se lembra mais de mim; os amigos Paulo e Elaine se separaram; e o Betinho parou de estudar na CAL, arranjou um emprego e foi morar no prédio ao lado.

No meio do sonho, a claridade me bate e, dolorosamente, acordo. Vejo que o cenário ainda é o mesmo e os personagens da novela não ocupam exatamente os seus postos. Mas, estranhamente, tudo está sob controle. Dou um pulo no Bar do Serafim para rever pessoas, garçons que são testemunhas dos meus porres. Entre um pensamento e outro, um gole de chope, devaneios. Lembranças de contos infantis, especialmente de um que sempre me intrigou: por que o machado tem sempre que ferir o sândalo, para que este se deleite em seu perfume? 

Ao final da tarde, passo no Severyna para comer algo com sustância, saboroso e tipicamente nordestino. No período em que sacio a fome, um pequeno guardanapo aguarda meus versos. Estarei inspirado? Definitivamente, não. Acompanho o desfecho melancólico de domingo, ao deparar-me com grupos de torcedores eufóricos que tomam a Rua Ipiranga. Chego à conclusão de que é melhor eu retornar ao lar.

Pela TV, israelenses e palestinos não cessam o embate e a violência urbana aumenta no Rio de Janeiro.  Tudo tão longe e tão perto daqui. Estirado no sofá da sala, adormeço.

A segunda-feira amanhece nublada. Vivaldi, quem diria, toca outra vez no som do vizinho, ou melhor, da nova vizinha – uma jovem musicista. Observo, da janela, manifestantes pedindo paz e justiça em frente ao Palácio Guanabara. Termino o café e desço. Dou bom-dia ao porteiro e não vejo mais as freiras, só as esquinas cheias. Nas bancas, jornais noticiam mais um escândalo de corrupção. A moça que segurava o saco de pães entra em um caminhão de mudança e a menina levada da bicicleta, tranquilamente, brinca com suas inertes bonecas de pano a caminho da escola. Um poema começa a nascer no meu coração, enquanto faço o sinal para o ônibus. Devo concordar com o que dizem. As pessoas vêm e vão. E nem todas habitam entre nós. Cada bairro sabe da sua história.

Laranjeiras, eu sei.                

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