

Textos: Poesia
De Água Para Vinho
Chego a saciar a sede ao beber tua noite.
Vinho tinto e rascante nas lentes da taça!
De alegria e carne exponho a boca cheia.
Todos os teus desejos são minha graça.
Mordo as horas, mastigo o tempo.
Descubro em cada gole o teu segredo.
Não querias um Deus junto a ti para brindar?
Alguém, de entre mitos, escolhido a dedo?
Tintim! Ouço o tilintar de nossos corpos,
volúpias derramadas (tua e minha).
A língua saboreia livre sem tomar fôlego.
Os mágicos prazeres vêm das vinhas.
Uma nova safra nasce neste instante.
Velho moinho em que fui trigo e ora pão,
te dou sustento à luz do deslumbramento.
Apresento o milagre da transformação!
Faço da farra e do amor o meu banquete.
Celebro a vida à mesa farta (uvas e nacos).
Nada mais sagrado, nada mais profano:
o Zé-ninguém de ontem é hoje o teu Baco!
A Farsa e a Força
Guardo cinco segredos
nos dedos desta mão.
Faço a soma dos medos
na folha de urtigão.
Tudo à volta entristece:
o ermo,o solo,o entrevero.
A farsa face a face
com a força mais fere.
Face invertida e falsa,
a façanha da foice.
Nem a farsa falsete,
nem a força forçada.
Há a recusa do chão,
só uma face ferida.
A farsa contra a força
é poesia impune.
Mas peço um canto santo
onde tão dura a farsa,
onde tão lume a força.
A fé já não me aplaca.
Ponto de desencanto,
eu canto minha prece
bem na ponta da língua,
bem na ponta da faca.
Ponto de Cruz
choro
a erosão
do tempo
traçado
em ravinas
sei do que é
deserto:
o caminho
do homem
a vida é trama
dedicada à seca
entrelaçam-se
desmandos
desenganos
desenredos
no horizonte
de esperas
o sertão bordado
de mandacarus
escrevo meu rumo
no ponto de cruz
Gatuna
rompe a calma da noite azul
o salto firme da gatuna
lua baixa a pratear o corpo
sedutora dominatrix
(masculinos e femininos)
é sob a sombra de um morcego
que resplandece a joia rara
e a febre do arranhão do amor
é o artifício da vilã
qual o fogo que a faz mulher
fêmea deitada sobre as telhas
nem toda gata cai de quatro
in O Reverso do Morcego
Marginal
quando, nos teus esgotos,
a água for tão turva
e cercado de lodo
entre fezes e musgos
tu te vires à margem
da tua sociedade
não sejas bestial
para quem não tem culpa
aguça teu olfato
sobre a parte que é podre
a que te discrimina
por tua pele escamosa
se a vida é um ringue
enfrenta oponentes
se acaso te excluem
luta por teus direitos
e devolve o amor
a esta grande cidade
a mesma onde nasceste
e cresceste sob sonhos
que agora, bem mais bruta
por ser apenas bruta
cauda, garras e dentes
quer arrancar-te o couro
in O Reverso do Morcego
Domínio
entre mim e ti
repousa um braço
lasso de ventríloquo
e pelos teus lábios
tão somente falo
pelas tuas mãos
ajo em submissão
domínio psicótico:
gestos bocas olhos
dou vida ao transtorno
cicatriz no rosto
ardiloso cérebro
sou o tu: o eu outro
que me faz boneco
in O Reverso do Morcego
Implumes
em pleno sertão
o inaudível canto
dos anjos (meninos
de pó e poeira)
herdeiros das nuvens,
crentes, sobrevoam
mas sem que saibamos
seus sonhos em sépia
na lira do tempo,
o voo cego e implume
Autoassombro
irrestrita
a força de romper
correntes,
de libertar a fera
refletida pelo
espelho interior
não o bicho
mas o monstro
que habita
o homem
por capricho
ciência
ou maldição
dentro de si
o voo alto
autoassombro
fora de si
o demônio
à solta
há noutro animal
alma mais desumana?
in O Reverso do Morcego
Serelepe
por trás daquela peraltice ávida
a traquina, serelepe, havia
desnudado pecados, pensamentos
deixando ao longe o ar de inocente
(e pulou daqui e saltou dali!)
pôs-se a brincar de amar tão seriamente
e por um louco amor envileceu
entregou-se à paixão arlequinal
provocante, e ainda mais carnal,
provou da fruta o amargo e o ácido
o pedaço da vida apodrecida
com os olhos e lábios da maldade
in O Reverso do Morcego
Datas
vingo o instante infortúnio
em períodos prefixados.
transcorro o tempo vil:
datas, ó datas!
algumas mais
arrancadas
dentro de nós
do que folhas
de um calendário
nele, agendo o rumo
a que me destino
diariamente
ensaio o meu adeus
junto ao homem descartável
in O Reverso do Morcego
Lúdico
quem finge saber o enigma
o homem ou a esfinge?
o homem mata a charada
ou a charada mata o homem?
despista quem dá a pista
questão de interpretá-la
quebrar cabeça no jogo
que é vida e quebra-cabeça
certas respostas não são
nem serão respostas certas
por tudo o que se adivinha
lê-se à luz das entrelinhas
astúcia, inteligência
ser lúcido e ser lúdico
não se perder no espelho
ou em algum labirinto
in O Reverso do Morcego
Tempos Inexatos
escorrem vão entre os dedos
minhas horas de descuido
dou-me corda como impulso
em elogio ao relógio
acerto ilógicos prazos
vencimentos, validades
a máquina presa ao pulso
não me permite o atraso
ontem, hoje, amanhã
quando quando me expirar?
vida regida por Cronos
relativizo o autômato
todo horário é contrário
todo tempo, contratempo
busco viver o momento
na engrenagem dos meus dias
in O Reverso do Morcego
O Risco
não me queira um bom moço
porque ninguém me decifra
na hora em que o devoro
viver é tão perigoso
– isto já disse o poeta –
e amar é um salto livre
mergulho sem paraquedas
faço um turbilhão de medos
provoco ataque de nervos
porém desafio o tempo
enfrento a bomba-relógio
ultrapassando limites
o brilho da faca sempre
reluz bem fundo em meus olhos
nem mocinho nem vilão:
quem se aventura em vão?
descobrir a mim não é
querer acertar o tiro
descobrir a mim só é
querer aceitar o risco
in O Reverso do Morcego
O Blefe
no jogo da asa da bruxa
quem dá as cartas é o louco
entre risos e dramas pouco
se sabe das tramas em curso
rosto figurado do mal
arame farpado nos dentes
desvela o crime truculento
na vez da cartada final
mortal é piada sem graça
mundo cercado é hospício
vê-se o circo pegando fogo
no lance insano do palhaço
ardiloso em qualquer barganha
impiedoso naipe à mesa
mata-se o jogo com um blefe
na vida gargalha quem ganha
in O Reverso do Morcego